sábado, 27 de dezembro de 2014

10.2 - Patagonia. Por-do-sol



Nove da noite em Ushuaia. Ainda temos sol. Brilhante, refletindo na baía de pequenos barcos adormecidos. É um pôr-do-sol longínquo, aquele do fim-do-mundo! No porto, quase bloqueado por containers, o apito de um navio soa melancólico. 

O momento tem a solenidade que a geografia lhe dá! A pequena baía, o Canal de Beagle mais ao fundo, as montanhas escuras, pontiagudas, com manchas brancas de neve por contraste... No verão, a agudez dos picos se evidencia. Triangulares, poligonais, uma geometria sem fim.







O grande navio de cruzeiros manobrou e - como um animal gigante - se afasta do porto rumo a uma noite de mares gelados. Me vem à mente o poema de Fernando Pessoa, Lisboa Revisitada. Acho que é este o nome. Ele fala do delírio de seus pensamentos enquanto um paquete deixa o porto. Se a internet daqui fosse boa, releria este poema agora, seria a melhor forma de homenagem à Ushuaia.


Viajo com a Eta, amiga querida de tantos anos, tantas histórias e - incrivelmente - poucas viagens. Nos afinamos nesse trançar pernas nos caminhos da vida, nas ruas de Ushuaia. Ela dorme agora, desmaiada da partida em plena madrugada.

Dez e meia da noite. O sol acabou de se por.
Mesmo muito cansada, me recuso a sair deste lugar enquanto a noite não chegar. Lá fora deve estar uns 4 graus! Bebo Fernet com Coca-Cola, o drink argentino por excelência. Peço centolla para o jantar e ausculto os meus desejos: que mares ainda me esperam?

Bem, o poema que me lembrei não era o Lisboa Revisitada. Nao me lembro do titulo e nao conseguirei descobri-lo agora mas este é - também um dos grandes poemas de Pessoa. Merece ser registrado.


LISBON REVISITED (1926)


Nada me prende a nada. 
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo. 
Anseio com uma angústia de fome de carne 
O que não sei que seja - 
Definidamente pelo indefinido... 
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto 
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar. 

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias. 
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. 
Não há na travessa achada o número da porta que me deram. 

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido. 
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota. 
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados. 
Até a vida só desejada me farta - até essa vida... 

Compreendo a intervalos desconexos; 
Escrevo por lapsos de cansaço; 
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia. 
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme; 
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago; 
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso. 

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma... 
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei, 
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa 
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas), 
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas 
Onde supus o meu ser, 
Fogem desmantelados, últimos restos 
Da ilusão final, 
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido, 
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus. 

Outra vez te revejo, 
Cidade da minha infância pavorosamente perdida... 
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... 

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, 
E aqui tornei a voltar, e a voltar. 
E aqui de novo tornei a voltar? 
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, 
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, 
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? 

Outra vez te revejo, 
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. 

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -, 
Transeunte inútil de ti e de mim, 
Estrangeiro aqui como em toda a parte, 
Casual na vida como na alma, 
Fantasma a errar em salas de recordações, 
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem 
No castelo maldito de ter que viver... 

Outra vez te revejo, 
Sombra que passa através das sombras, e brilha 
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida, 
E entra na noite como um rastro de barco se perde 
Na água que deixa de se ouvir... 

Outra vez te revejo, 
Mas, ai, a mim não me revejo! 
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, 
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim - 
Um bocado de ti e de mim!...

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