domingo, 11 de janeiro de 2015

10.14 - Patagonia. Encontrei o poema certo

Em minha primeira noite em Ushuaia sabia que estava desfrutando de um por de sol único. Era - no Hemisfério Sul, o mais tardio sol de verão visto por uma pessoa, excluindo a Antártida, é claro. Deixei a emoçao fluir, deixei que a poesia viesse. Ela sempre me faz companhia nos momentos em que não é necessário falar.

E a poesia que veio foi a de Fernando Pessoa. Não sabia o nome e arrisquei um. Não consigo memorizar poemas palavra por palavra,mas guardo deles a sua essencia.

E o poema foi evocado pela imagem de um navio que se afastava do porto  "... e quando o navio larga do cais e se repara de repente que se abriu um espaço entre o cais e o navio, ..."

Esse momento de melancolia ficou girando na minha alma, a luz do sol se dourando mais e mais na baía e nos montes.

Agora tenho o poema inteiro. Muito melhor que eu me lembrava.

Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente min
ha.

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